Diário de Bordo

Registraremos neste blog relatos diários da Profa Suely Avellar a bordo do NasH Dr. Montenegro, navegando pelo Rio Purus. Boa viagem, Suely!

Desde 1997, o acervo do Projeto Portinari tem servido
como ferramenta para um amplo programa de arte e educação, que já atingiu mais de 500 mil pessoas em todos os estados brasileiros. Para Portinari, o pincel era uma arma a serviço da não violência, da justiça social, da cidadania, da liberdade, do espírito comunitário e da fraternidade. São estes os valores que pulsam na sua obra e que o Projeto Portinari tem levado às crianças e aos jovens de todo o país.

19 de novembro (tarde)


A Comunidade de Nova Olinda é de acesso tão difícil que a equipe preferiu ficar em uma casa flutuante e trazer a população para ser atendida ali. Os donos da casa imediatamente colocaram a casa disponível para o atendimento médico.

A casa da D.Nazira, que usamos para o atendimento . Atrás da casa pode-se ver a altura do barranco que teríamos que escalar para chegar na escola ou na igreja.

Esta foi a casa ribeirinha mais limpa e organizada que encontramos até este momento. Ela era composta de uma sala de entrada, onde só havia uma estante com uma boa televisão. Do lado direito ficava o quarto do casal e dos filhos e do lado esquerdo, a sala de jantar, com uma mesa para 6 pessoas, cadeiras sólidas, de madeira e a cozinha separada por uma estante aberta, tipo “cozinha americana”. As panelas de alumínio estavam dispostas em uma prateleira sobre a pia e brilhavam. Tinham um bom fogão a gás e uma geladeira nova. Tudo era de um capricho que não se vê nas casas ribeirinhas. A família era composta de marido, mulher e 4 filhos, sendo dois meninos adolescentes e dois menores com 7 e 9 anos. Eram todos muito bem educados e a mulher ficou muito contente quando a Dra. Uryana entrou na cozinha e chamou a mim e a Dra. Danielle para vermos o capricho dela para com as panelas. Fizemos muitos elogios e ela sorria de felicidade.

Dra. Uryana conversa com um dos filhos do casal.

Perguntei-lhe o seu nome e ela me disse que se chamava Nazira. Conversamos sobre a vida ribeirinha, o cuidado com os filhos e a escola local. Eu pedi para chamar o professor para que pudesse lhe oferecer os livros que trago para todos os professores ribeirinhos, e ela me disse que “o professor tava pra cidade resolvendo umas pendências dele, havia 15 dias” e eu perguntei como ficavam as aulas das crianças. Ela respondeu: Não tem aula enquanto ele está fora. Ele costuma se ausentar pelo menos por 20 dias no mês. Vimos observando que esta prática do professor ir “resolver umas pendências” é muito comum naquelas comunidades e soube que isso acontece por que eles assumem o emprego de professor em duas comunidades e ficam dividindo o mês entre as duas escolas. O salário é dobrado, mas as crianças só têm meio mês de aulas.

Chamei as crianças para participarem da “escolinha de arte do Candinho” , que montei na sala de entrada da D.Nazira. Nos sentamos no chão, em torno do bauzinho e das reproduções dos quadros . Noto que as crianças que recebem este ensino “ homeopático” têm muito mais dificuldade de criar do que as das comunidades onde o ensino é fraco, mas regular. Contei as histórias de Candinho, ao mesmo tempo em que pedia que eles também me contassem como eram as suas brincadeiras. Quase todas as crianças tinham muita dificuldade de expressão oral. Pedi que assinassem os desenhos e vi que elas mal sabiam escrever o próprio nome. O sobrenome, então... não tinha como.

Uma adolescente de 15 anos começou, então, a desenhar, com alguma habilidade, frutas variadas, e ia oferecendo os desenhos feitos com lápis grafite, para os menores cobrirem com caneta hidrocor. Quando indagada se aquela era uma prática usada na escola, ela me respondeu que as aulas de arte do tal professor faltoso eram dadas assim também e que era ela quem preparava o material para as crianças colorirem.

O menino exibe as uvas desenhadas pela amiga adolescente e coloridas por ele.

Todos gostam se mostrar o que fizeram.

Os doutores Porto e Picarelli se acomodaram na sala de jantar e examinaram e prescreveram neste local. As dentistas e os enfermeiros preferiram a varanda lateral para as extrações e para a vacinação.

O Cabo enfermeiro Wesley auxilia a Dra. Uryana.

Como sempre faço, ao terminar as atividades, distribui com as crianças o material que eles usaram e recolhi o bauzinho e as reproduções. Neste momento, D.Nazira veio me ajudar a arrumar o material e conversamos mais um pouco. Ela era muito inteirada de tudo da comunidade e percebi também que era uma pessoa muito inteligente, aí eu perguntei por que ela não assumia as aulas das crianças, já que ela era tão interessada. Ela riu e me disse que não poderia fazer isso, pois era analfabeta. Só tinha estudado por dois anos, mas não conseguiu se alfabetizar. É essa a triste realidade ribeirinha...

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