Diário de Bordo

Registraremos neste blog relatos diários da Profa Suely Avellar a bordo do NasH Dr. Montenegro, navegando pelo Rio Purus. Boa viagem, Suely!

Desde 1997, o acervo do Projeto Portinari tem servido
como ferramenta para um amplo programa de arte e educação, que já atingiu mais de 500 mil pessoas em todos os estados brasileiros. Para Portinari, o pincel era uma arma a serviço da não violência, da justiça social, da cidadania, da liberdade, do espírito comunitário e da fraternidade. São estes os valores que pulsam na sua obra e que o Projeto Portinari tem levado às crianças e aos jovens de todo o país.

25 de novembro

Quando o navio abarrancou em Tapauá o Comandante Gleiber convidou o Secretário de Saúde da cidade para visitar o navio e este pediu que o Comandante atendesse à uma comunidade que estava crescendo muito e necessitando de ajuda. Nova Tapauá fica bem próxima de Tapauá e já está com 96 casas.

A maioria das comunidades que visitamos até o momento estão ligadas ao município de Tapauá, que deveria assisti-las em suas necessidades básicas, tais como saúde e educação. Mas isto não acontece em nenhuma delas, pois o prefeito eleito, cassado por roubo, encontra-se foragido. O vice prefeito assumiu , mas também teve o mandato cassado por roubo,foi preso e agora está foragido. Recentemente o presidente da Câmara de Vereadores assumiu o cargo e está tentando recuperar o tempo perdido com os dois bandidos, mas notamos que o descaso com as populações ribeirinhas continua o mesmo. Por exemplo, o diesel para alimentar os geradores, que deveria ser fornecido pela prefeitura, não chega às comunidades, condenando-os à falta total da energia. As famílias que possuem geladeira e televisão não têm como usá-las e à noite têm que se valer das lamparinas ou de velas. Algumas comunidades que têm um líder mais esclarecido, já alfabetizado, e um tanto politizado, ainda conseguem alguma coisa da Prefeitura, pois os moradores se unem e vão até Tapauá em suas canoas motorizadas – às vezes gastando dois ou três dias de viagem - e exigem o diesel, alguns medicamentos, a merenda e o material escolar que eles próprios transportam para garantir a chegada de tudo na comunidade.

Nova Tapauá é uma dessas comunidades mais organizadas. O navio abarrancou e dedicou um dia inteiro para os moradores, além daqueles que eram avisados pela lancha do navio e que vinham também em busca do atendimento.

O Sargento Marco Antonio e SD Nunes já na escada do barranco.


O sargento Marco Antonio carregando parte do meu material, se equilibrando em cima da tábua sobre o rio.

Os médicos e dentistas atenderam à população dentro do navio, o que facilita muito , pois os consultórios são muito bem montados e os casos de emergência já ficam logo na enfermaria para uma atenção maior. A fila de pessoas começou a se formar logo cedo e os médicos foram se revezando na hora do almoço para que as consultas não fossem interrompidas em nenhum momento.

Vejam o esforço dessa jovem mãe para levar os filhos para se consultarem. Notem a distância que esta mãe percorreu de volta à comunidade.


Agora mais de perto. O sol é inclemente!

Eu fui para a escola local, com a ajuda do Sargento Marco Antonio e o SD Nunes, levando o meu bauzinho e todo o material. A subida do barranco é muito íngreme e só contamos com degraus de madeira para chegar ao topo.

A escola conta com três salas de aula, sala de diretoria e sala dos professores. Uma nova escola está sendo construída em frente a esta antiga e o diretor me explicou que as duas vão estar funcionando, assim duplicando o número de salas.

A escola antiga. Quando o rio enche a água chega até a varanda da escola.

A frente da escola antiga com o nosso banner.

A nova escola, em construção. Observem que o telhado dessa construção fica bem acima do teto. Uma solução inteligente para minimizar o calor dentro das salas. Todas as escola aqui são de madeira e têm os telhdos de zinco, encontados no teto o que transforma a sala de aula em uma verdadeira estufa!

Os professores e alunos começam a conhecer Candinho.

Conversei longamente com o diretor, prof. Antonio Cláudio Alves, e perguntei como aquela comunidade tinha conseguido essas escolas tão grandes e bem montadas e ele contou que era uma parceria da Prefeitura com o Governo do Estado, mas a parte de competência da Prefeitura, que é o fornecimento regular da merenda e de todo o material escolar, não era cumprida.

O professor ajuda a colocar as pranchas junto ao quadro.

Na sala dos professores fica também a cozinha e a dispensa da escola. Fui com o diretor conhecer este espaço e ele me mostrou o freezer grande, espaçoso e ...vazio; em um canto uma quantidade de sacos de arroz e outra de biscoito com a validade vencida, as duas pias com cubas de aço inox e torneiras , mas sem água corrente. As zeladoras da escola lavam tudo usando a água armazenada em dois grandes recipientes de plástico junto às pias. Conversei com as duas encarregadas e elas me disseram que como eles só mandaram o arroz elas não podem fazer nada para as crianças comerem na escola, pois não vão oferecer somente arroz ...


Crianças mostram o rio em seus desenhos.

Um outro detalhe da falta de respeito para com a comunidade é que eles têm eletricidade vinda diretamente de Tapauá, mas este benefício só é liberado à partir das 18 horas, para as aulas do turno da noite. Perguntei ao diretor como eles resolviam o problema da iluminação em dias de chuva, quando a luz do sol não está presente e ele me respondeu que quando escurece durante o dia, por conta de temporal, eles interrompem as aulas e dispensam os alunos para voltarem as suas casas.

Depois de ouvir as queixas do diretor eu cheguei à seguinte conclusão: é como se a população fosse convidada para um grande banquete, com iguarias finas, carne de primeira, mas que os talheres fossem negados aos comensais...

Em uma das salas encontrei um professor e dois alunos adultos estudando em frente à uma tela grande de televisão. Fui conversar com o professor, que me explicou que eles tinham o Ensino Médio à distância, com o apoio da Secretaria Estadual de Educação do Governo do Amazonas. O professor Ocimarildo me mostrou como funcionava o sistema e me disse que o método era referência internacional em qualidade, e que a Secretaria já havia recebido prêmios pela implantação desta metodologia em diversos municípios do estado. Eles têm aulas de todas as disciplinas do Ensino Médio, com os professores à distância, vendo-os como se estivessem na sala de aula e com os alunos podendo fazer perguntas e tirar as dúvidas durante todo o tempo. Muito bom! O professor me disse que tudo funciona muito bem e que eles têm no momento 10 alunos, muito participantes.

A escola tem 6 professores, revezando-se nos três turnos e mais de 200 alunos. Um recorde! Coloquei o meu material na sala que me foi oferecida pelo prof. Antonio Cláudio e pela primeira vez pude ter mesas e cadeiras para as crianças pintarem, como vocês podem ver nas fotos. Coloquei, com a ajuda de dois professores, as pranchas com as reproduções junto ao quadro negro e assim, pude mostrar a todos, com bastante facilidade, algumas obras de Candinho. Eram tantas crianças no turno da manhã que tivemos que dividi-las em dois grupos. As que iam terminando o desenho ou a pintura davam assento para as próximas e assim fizemos também no turno da tarde, que foi interrompido às 3 horas, porque o tempo fechou completamente, começou a trovejar e a sala ficou tão escura que não dava mais para trabalhar.

E foi neste momento que o Sargento enfermeiro Magnus reuniu todas as crianças na grande varanda da escola em construção para uma palestra sobre a necessidade de se escovar os dentes várias vezes ao dia. Divertidíssima e também muito didática.


Sargento enfermeiro Magnus dirige-se às crianças.

O Sargento Cláudio distribui os folhetos educativos.

O Sargento é um professor nato. Ele consegue se comunicar com as crianças com a maior facilidade e todas participam interagindo com ele nas suas brincadeiras. Ao final, entra o Sargento Afonso para falar da segurança no rio. Ele conversa sobre os procedimentos para uma navegação segura, com o uso dos salva-vidas, de condutores habilitados a dirigir a embarcação, mostrando os riscos que podem ser evitados se todos seguirem as regras que estão escritas nos panfletos distribuídos naquele momento. As crianças participam da demonstração colocando os coletes e aprendendo a manejá-los.

Sargento Afonso explica como se usa o colete salva vidas corretamente.

Quando o temporal passou recolhi o meu material e pedi a ajuda das crianças para levar tudo de volta ao navio. Foi uma disputa geral para ver quem carregava as minhas coisas e eu percebi que aquele momento seria a oportunidade que eles teriam de entrar de novo no navio e assim distribui tudo por várias crianças e fui de mãos abanando!

Um comentário:

  1. Essa viagem foi diferente de todas as outras por ter abordo essa senhora super simpática,
    atenciosa e acima de tudo super humana que levou para os ribeirinhos um pouco de cultura,
    sabedoria, experiência e muito carinho com todos que ali estavam ou apareciam; e é claro
    que todos nós do Tracajá do Juruá também aprendemos muito com ela; exemplo disso foi a
    vontade de permanecer abordo mesmo quando o navio encalhou nos troncos do Rio Purus e
    tivemos que permanecer ali parados por quase um mês, isso demonstra um enorme espírito
    de companheirismo e comprometimento dessa simpática senhora.
    Professora Suely Avellar, deixo aqui um grande abraço e desejo sucesso, saúde e Paz em
    sua vida.
    Como costumamos dizer na Marinha; Bravo Zulú pelo seu importante trabalho.

    Respeitosamente,

    Sargento Afonso

    ResponderExcluir